quarta-feira, novembro 03, 2004

Outra Via Dolorosa:

«Sábado, Outubro 30
Sol, e chuva
Tinha chegado de um jantar com amigos meus do básico. Diverti-me muito. Ficou mais uma vez confirmado, que são a melhor turma que já tive.

Chego a casa ás 00h e vou directo ao quarto de banho. O meu pai aparece e diz-me a que horas iríamos para Lisboa hoje, e de seguida pergunta-me com quem vou.
Mais uma desculpa, mais uma mentira:

Vou encontrar-me com um amigo meu, que andou comigo na escola x. Já não o vejo à muito tempo, pois os pais dele tiveram que se mudar para Lisboa por motivos profissionais.


O meu pai ainda me informa que não vou só com ele no carro e quer que eu almoce com ele. Convite que infelizmente tive que recusar de imediato.

Acabo de tomar banho e ligo para o I, começo a dar-lhe informações sobre a tal escola para que esta mentira dê certo (se é que alguma vez uma mentira "dá certo"). Mas, à medida que começo a ter noção da dimensão que isto está a tomar, que como uma bola de neve vai ficando cada vez maior e maior, sinto-me cada vez mais perdido e desorientado. Uma das possíveis soluções é contar aos meus pais a verdade.

Por um lado tinha um encontro com a pessoa que amo, que podia correr mal, e fazer com que o meu pai ficasse a saber de tudo da pior maneira possível. Por outro, podia acordar os meus pais e contar a verdade.

Falei com o I., com a L. e com o B. Todos me tentaram ajudar e compreenderam a minha situação, mas eu sei que eles não podiam decidir por mim.
Então, fiquei horas recolhido em mim, horas que não passavam, em que a dúvida, a culpa e o medo me dilaceravam o coração e me embriagavam a racionalidade. A única certeza que tinha, era que uma decisão tinha que ser tomada.
O tempo passava e o meu desespero só aumentava. Estava cada vez mais perdido, desorientado, triste e sem forças.
Ás 3h da manhã o meu pai acorda para ir ao wc. Penso: "Só tenho duas alternativas, e uma delas só pode ser tomada agora."
Abro a porta do meu quarto. Saio. Perco as poucas forças que tinha e volto atrás.
"Eu, tu um dia vais ter que o fazer, e não há melhores ou piores dias. Há um dia." - dizia-me a minha razão.

Volto a abrir a porta do meu quarto, digo ao meu pai que quero falar com ele, e peço-lhe para entrar.
O resto da família dormia.


Eu- Pai, tenho que te dizer uma coisa. Eu não me vou encontrar com um colega meu.
Pai- Então? Vais-te encontrar com uma amiga?
Eu- Não pai.
Pai- É alguém que conheces-te na internet? Quem é? Deves dinheiro a essa pessoa? Aconteceu alguma coisa de grave?
Eu- Não pai. Não. Quero-te contar algo, mas não consigo.
...
Pai- Filho, amanhã falamos, eu quero ir dormir.
Eu- Não, não vás! Ouve-me. Prometes que me ouves até ao fim?
Pai- Sim filho.

Depois de várias tentativas que fiz, em que som nenhum saia, apenas suspiros e silabas desconexas, ganho um pouco de coragem, principalmente porque não podia recuar, e digo-lhe.


Eu- Pai, eu sou gay.
Pai- Oh filho! Eu estou cansado, vou dormir.
Eu- Não pai! Ouve-me! Eu estou a falar a sério contigo.
...
Pai- Mas o que é isso de "ser gay"?
Eu- Sinto-me atraído por homens.
Pai- Oh filho! Não me faças isso! Como é que te sentes atraído por homens?
Eu- Pai, não te sei explicar, sinto-me atraído sexualmente por homens, e não pelas mulheres.
Pai- Tu estás confuso. Sabes, a juventude é uma das melhores alturas da tua vida e também uma das mais difíceis. Depois vamos a um psicólogo ou psiquiatra, não sei, e tratamos desse desvio.
Eu- Pai eu não estou doente para ir a um psiquiatra, e eu não escolhi ser gay. Nasci assim e pronto.
Pai- Mas filho, isso não é normal, a sociedade não aceita esse tipo de coisas, exclui. Tu estás confuso. Como nunca tiveste sexo com uma mulher talvez tenhas ido por esse caminho. Eu trabalho tanto para te dar o melhor. Sabes, ás vezes se não fosse pela família a minha vontade era largar tudo. A tua mãe tem andado tão triste. Não lhe faças isto. Não nos envergonhes. Eu sempre te dei tudo o que precisas-te. Eu sabia que a internet não ia ser usada para o fim que eu comprei. Podias usar a internet para ampliar os teus conhecimentos, mas não o fazes. Como é que sabes que gostas de homens? Isso é algo temporário. Sei que estás a passar por uma fase complicada da vida. Mas não nos podes fazer isto. Esse tipo de gente é rejeitada. Toxicodependência, homossexualidade... tudo isso são dificuldades que podemos resolver. Nós esforçamo-nos tanto. Eu eduquei-te a ti e à tua irmã da mesma forma. E estou muito orgulhoso de vocês. Mas não me faças isto. O caso casa pia por exemplo. Essa gente é assim. Tu não és assim. Depois nós falamos sobre isso em família.

...


E muitas mais coisas me disse ele. Sempre sereno, deixava-me intervir, eu sempre tentando tirar estes bichos da cabeça dele. Concordei em ir a um psicólogo, embora mais tarde dependa do psicólogo que for. Conversamos mais um pouco, e fui-me deitar. Também tive que concordar que não ia a Lisboa hoje.
Acabamos a conversa ás 3h20.

Hoje de manhã, acordo com o choro do meu pai a falar com a minha mãe. Nunca tinha ouvido o meu pai chorar. Ouvia no meu quarto pedaços da conversa, que confirmaram que ele estava a falar da nossa conversa. Notei que a minha mãe refutava muitas das ideias que devem estar a destruir o meu pai por dentro, e que o acompanham desde que se conhece.

Tenho tanta pena dele. Não o queria desiludir desta forma. Ele não merece.
Agora, vou levantar-me e encarar a minha mãe pela primeira vez. Não sei qual será a reacção dela. Mas algo me diz que vai ser de compreensão. Ou na pior das hipóteses idêntica à do meu pai. Calmo e confuso.

A minha vida vai mudar. Não sei o que se segue. Mas eu algum dia tinha que o fazer, parece que esse dia foi hoje. Agora vou ter que conversar com os meus pais e ajudá-los a ultrapassar o que eu sozinho já ultrapassei.

Quanto ao meu estado de espirito, e como me sinto. Bem, defino-o como o tempo de hoje. Sol e chuva simultaneamente.

posted by Eu at 11:23

Domingo, Outubro 31
Já chegaram a um ponto em que depois de tanto terem chorado, acabaram por se conformar com a tristeza? Eu cheguei, ontem.

Ter que contar à minha mãe, que o quis ouvir da minha boca, passar por tudo outra vez, ouvi-la dizer que temia pela minha felicidade, pela da nossa família, que tinha depositado todos os sonhos em mim, que queria ter netos, que queria que eu casasse, que trabalhava para mim e que agora nada mais fazia sentido. Que estava triste, revoltada e que tudo de mal lhe acontecia. Que já não tinha vontade de viver. Que eu ainda não podia ter tanta certeza de tudo isto, pois a minha personalidade ainda não estava formada...
Não imaginam o que é ouvir a vossa mãe a dizer que vos vai perder, que vão ser infelizes, e que mereciam muito mais. Cada palavra era como se de uma faca se tratasse, lançada ao meu coração.

Depois, o meu pai. Que me pede para não lhe tirar a dignidade. Vejo-o a chorar. Coisa que só fez três vezes na sua vida. Quando a minha irmã teve uma doença muito grave, quando os meus avós faleceram e agora. Consigo imaginar a dor que ele está a sentir. Talvez seja em muito, idêntica à minha.

A minha irmã soube da minha homossexualidade, ou pelo meu pai, ou pela minha mãe. Hoje, entrou no meu quarto, enxugou-me as lágrimas e beijou-me. Fiquei muito feliz por saber que tenho alguém que me pode ajudar mais directamente. E pelo pouco que já falei com ela, parece-me uma pessoa esclarecida.

O próximo passo é arranjar um psicólogo na zona do porto, que sinceramente não sei como o vou fazer, talvez via internet, para que possa ajudar os meus pais, e para que tudo o que eu lhes digo possa ser confirmado por um profissional.

Nunca estive tão triste como ontem. É como se tivesse morto, mas ainda respirar.
Hoje instalou-se uma certa calma e normalidade que esconde muitos sentimentos... É preciso tempo. Mas, acima de tudo, a reacção deles foi boa. Mostraram que me amam, e que estão dispostos a dialogar comigo.

posted by Eu at 13:56» in Verdadeiro Eu

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